nandofanclub

Dissertações, opiniões, escárnio e mal-dizer, canções de amigo, pensamentos ociosos, odiosos, preguiçosos, o óbvio, o subliminar, a bela e o monstro, eu, tu, ele, aquele, aqueloutro, o que só acontece aos outros, o que só me acontece a mim. Tenho dito.

21.11.04

A culpa a quem a sente

a culpa de rider-waite

A culpa é algo de muito subjectivo. Regra geral, só é culpado quem é apanhado. Só que hoje em dia já não é bem assim; um indivíduo pode ser visto por dezenas de pessoas a esvaziar o carregador de uma semi-automática no crânio de um pobre desgraçado, para que depois um advogado habilidoso alegue insanidade temporária em tribunal, porque o réu tinha visto a sua dedicada esposa em amena confraternização com o indivíduo a quem, minutos depois, esburacou a cabeça. E sai em liberdade, como um herói. Algures na bíblia, pode-se ler: “olho por olho, dente por dente”, e há quem siga as escrituras à letra.
Tempos houve em que a coisa funcionava um pouco ao contrário. O acusado não tinha sido apanhado e já estava a assar na fogueira. A Inquisição era algo de fantástico: bastava que alguém arranjasse uma história sobre ter visto a padeira a sair à rua numa noite de lua cheia, e voilà: bruxa no churrasco. Hoje seria, sem dúvida, uma solução prática para eliminar o vizinho que não nos deixa dormir antes das duas da manhã.

Mas a questão da culpa, no seu sentido mais lato, não se fica pela condenação exterior; existe também como luta interna, que cada um trava ou não, conforme os casos. Um anónimo cidadão inglês era (raramente) visto a vaguear de valise de médico na mão, por entre a penumbra e o nevoeiro que naquela altura ainda sufocava Londres. De noite, todos os gatos são pardos; por isso, nunca se soube quem esventrou aquelas prostitutas. Jack transportava na sua valise um pequeno conjunto de instrumentos cirúrgicos, devidamente esterilizados, que utilizava metodicamente para rasgar as suas vítimas, do baixo ventre ao externo, num ritual que se repetia sem seguir calendário, em noites escolhidas aparentemente ao acaso. A última vítima foi encontrada junto ao Tamisa, com o fígado e o coração separados do corpo e o intestino delgado serpenteando em volta do tórax.
Seria Jack culpado, quem quer que ele fosse? Não o era porque não foi apanhado e não o era porque não achava que tivesse feito algo errado. Provavelmente acreditava que tinha feito um favor àquelas mulheres, libertando-as de um mundo cruel e da desilusão da vida.

Estava de consciência tranquila.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

spooky... ;)

9:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Isto é um dos muitos exemplos que aludem ao facto de a culpa ser uma imposição moral e, acima de tudo, social.Gosto muito desses fenómenos de responsabilização.
PS: O blog tá porreiro.

10:18 da tarde  

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