nandofanclub

Dissertações, opiniões, escárnio e mal-dizer, canções de amigo, pensamentos ociosos, odiosos, preguiçosos, o óbvio, o subliminar, a bela e o monstro, eu, tu, ele, aquele, aqueloutro, o que só acontece aos outros, o que só me acontece a mim. Tenho dito.

21.11.04

Vlad

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As pessoas, por vezes, são extremamente irritantes. E quase sempre o são, sendo quem são habitualmente. O que me faz pensar que talvez a culpa seja minha. Alguns dias tenho paciência para as aturar, para as acarinhar, para conversar com elas, escutar as suas mágoas, rir com elas, trocar anedotas sobre a última desgraça nuclear, falar das mamas da minha vizinha do 3º esquerdo, do golo do Sá Pinto, do aumento das taxas de juro no crédito à habitação, das teorias oníricas de Jung, do gato que passei a ferro na IC1, da demissão do Ministro do Equipamento, das vantagens da masturbação, de qual será a melhor marca de cerveja preta... outros dias só me apetece dar-lhes um tiro na fronte.
Não, isso é demasiado indolor. Têm que sofrer.

Os empalamentos sempre me fascinaram. Vlad, o primeiro Conde Drácula, empregava esta prática para acarinhar os traidores e condenados capitais. Era a execução mais barata do mercado: bastava uma resistente estaca de madeira presa perpendicularmente ao solo, com a ponta superior bem afiada; o felizardo era içado até à altura da vara, denominada então de palo, e era enterrado na madeira, numa operação em que a ponta do palo penetrava a carne junto à base da coluna vertebral, rasgava todo o tórax e voltava a sair do corpo acima do externo. Apesar de se executar rapidamente, o empalamento proporcionava aos condenados uma morte lenta e agonizante, que se poderia estender por vários dias consoante a quantidade de sangue que o empalado tivesse nas veias. Para prolongar o calvário, matava-se frequentemente a sede aos desgraçados.

É certo que os gritos agudos das vítimas, durante o empalamento num terreiro próprio, eram uma inesgotável fonte de divertimento para os seus carrascos; mas o verdadeiro divertimento, esse, estava reservado para Vlad. O Conde havia mandado construir uma espécie de terraço no topo norte do seu castelo, onde estava situado o terreiro dos empalados. Era aí que tomava as suas refeições, enquanto se deleitava com a visão proporcionada pelos corpos de onde a vida se esvaía a cada gota de sangue que beijava o chão. Os lamentos surdos provocavam-lhe deliciosos arrepios na espinha.

Esta prática estendeu-se durante gerações de Condes Drácula. Há ainda nos Cárpatos quem afirme que, durante certas noites, é possível ouvir ao de longe os gritos aterrorizantes dos condenados de outrora.

A culpa a quem a sente

a culpa de rider-waite

A culpa é algo de muito subjectivo. Regra geral, só é culpado quem é apanhado. Só que hoje em dia já não é bem assim; um indivíduo pode ser visto por dezenas de pessoas a esvaziar o carregador de uma semi-automática no crânio de um pobre desgraçado, para que depois um advogado habilidoso alegue insanidade temporária em tribunal, porque o réu tinha visto a sua dedicada esposa em amena confraternização com o indivíduo a quem, minutos depois, esburacou a cabeça. E sai em liberdade, como um herói. Algures na bíblia, pode-se ler: “olho por olho, dente por dente”, e há quem siga as escrituras à letra.
Tempos houve em que a coisa funcionava um pouco ao contrário. O acusado não tinha sido apanhado e já estava a assar na fogueira. A Inquisição era algo de fantástico: bastava que alguém arranjasse uma história sobre ter visto a padeira a sair à rua numa noite de lua cheia, e voilà: bruxa no churrasco. Hoje seria, sem dúvida, uma solução prática para eliminar o vizinho que não nos deixa dormir antes das duas da manhã.

Mas a questão da culpa, no seu sentido mais lato, não se fica pela condenação exterior; existe também como luta interna, que cada um trava ou não, conforme os casos. Um anónimo cidadão inglês era (raramente) visto a vaguear de valise de médico na mão, por entre a penumbra e o nevoeiro que naquela altura ainda sufocava Londres. De noite, todos os gatos são pardos; por isso, nunca se soube quem esventrou aquelas prostitutas. Jack transportava na sua valise um pequeno conjunto de instrumentos cirúrgicos, devidamente esterilizados, que utilizava metodicamente para rasgar as suas vítimas, do baixo ventre ao externo, num ritual que se repetia sem seguir calendário, em noites escolhidas aparentemente ao acaso. A última vítima foi encontrada junto ao Tamisa, com o fígado e o coração separados do corpo e o intestino delgado serpenteando em volta do tórax.
Seria Jack culpado, quem quer que ele fosse? Não o era porque não foi apanhado e não o era porque não achava que tivesse feito algo errado. Provavelmente acreditava que tinha feito um favor àquelas mulheres, libertando-as de um mundo cruel e da desilusão da vida.

Estava de consciência tranquila.