nandofanclub

Dissertações, opiniões, escárnio e mal-dizer, canções de amigo, pensamentos ociosos, odiosos, preguiçosos, o óbvio, o subliminar, a bela e o monstro, eu, tu, ele, aquele, aqueloutro, o que só acontece aos outros, o que só me acontece a mim. Tenho dito.

14.6.06

Sandra e o príncipe



Sandra sempre fora bela, desde os seus verdes anos. E como todas as jovens sonhava com o príncipe encantado, com um amor que arrebatasse o seu doce coração de menina. Nada mais natural.
Sandra fez-se mulher, mas o seu coração ainda suspirava pelo cavaleiro da armadura reluzente. Francisco sabia disso, e Sandra sabia como o seu amigo aspirava ascender a tão garboso patamar. Mas não era suficiente, o príncipe ainda haveria de chegar. Era uma questão de tempo.
E o tempo passou. Dias, meses, anos. Sandra já não era uma jovem, apesar de conservar aqueles traços únicos, aquelas feições. Por mero acaso, reencontrou Francisco. O amigo encontrara harmonia noutros braços, que não os que desejava. Desejara sempre os de Sandra, mesmo após todos estes anos, mas nunca os encontrou abertos, nunca aqueles lábios se insinuaram para o saciar. O único que quisera ser o príncipe, nunca passara de pajem. Mas como a vida arrepia caminho sem pedir licença, Francisco não se prendeu à fantasia.
Sandra regressou a casa, àquelas quatro paredes despidas de afecto. Filtrou o seu chá, recostou-se na poltrona e fitou o vazio. Pensou no cavaleiro audaz que nunca chegou, no amor que nunca recebeu, nos carinhos que escusou aceitar. Pensou em Francisco, e uma lágrima solitária serpenteou pela sua face. Envolta na penumbra, cerrou os olhos embargados e adormeceu.
E não acordou mais.

1.6.06

Tomás



Tomás acordou com o raiar da manhã. Há anos que tem a mancha de humidade no tecto, como única companheira de alvorada, após o desvanecimento da prole em circunstâncias várias. Ergue da cama o corpo, pesado pelo tempo, e queda-se momentaneamente o seu olhar no retrato a sépia de Margarida.
Ah, Margarida. Não fosse a imagem emoldurada na parede, e já o seu rosto não cabia nas memórias de Tomás. O rosto não, mas o significado dessa mulher na sua existência nunca esmorecera. Margarida ERA a sua existência. Os filhos, apenas uma consequência, uma lei genética. Margarida era lei divina, vetada sem pré-aviso.
Abriu a janela; a maresia assemelhava-se a feromonas do passado, as aves voavam como voava o pensamento de Margarida, as crianças pareciam os frutos que ambos haviam colhido. Olhando para o céu, Tomás suspirou e disse baixinho: “Um dia destes, mato-me”.